terça-feira, 20 de outubro de 2009

Momento de leitura

A solitária

As escolas têm aquele ar maldoso, da típica sinceridade das crianças. Nela, pode se traumatizar uma pessoa que, talvez, jamais se curará.
Para Nora, a escola era uma armadílhia. Como se tivesse que cuidar os passos para pisar por onde andava. Como se os degraus ou o piso pudessem de repente desaparecer e abrir-se um buraco em seus lugares. Das paredes saírem mãos a fim de a puxar para dentro de um acimentado sem fim. Vozes, gritos e gargalhadas eram como tiros adentrando seu corpo, este, mutilado pelas ideias de uma perseguição de ridicularização injustificada.
Sentada a um banco de cimento sem pintura, mãos nas coxas, observava as outras crianças a brincarem, num divertimento curioso. Uma alegria aparentemente inesgotável, de uma fonte invisível. Os risos soltos fáceis. As falas não direcionadas. Não censuradas. Numa forma prática de agir. Mexer os braços, as pernas, sem receio. Sem vergonha. De exibir suas formas, roupas.
Experimentava, enquanto sua observação, o sentimento de limitação quanto a tudo que via. Uma carga de culpa por algo, como se fosse uma praga a ter que conviver com todos. Uma parasita a ser posta de lado, a seu lugar.
Difícil era entender porquê se sentia e era tão diferente dos demais.
Fosse o que fosse, aquilo causava uma dor absurda. Fosse culpa de ninguém, nem mesmo de si, nem mesmo de deus, ela pensava, não importava, o que sentia jamais poderia ser dividido por dois, ou por cem. Jamais poderia reduzir sua tristeza repartindo-a com alguém, se a tivesse.
Infração sua não tentar rever seus direitos de igualdade?!
Jamais ousaria questionar uma certeza de inferioridade dita por alheios. Mostrada por estranhos. Não por si. Mas por atos que vinham de outros. Estes diziam a vozes altas o valor e o preço das ditintas visões conceituais.
Nora ficara o recreio inteiro só. Ninguém foi consigo sentar. Nem lhe falar. Sequer notaram sua presença. Era como se fosse pedaço de algum pilar. Dos muros. Da cancha, de modo que poderia até ser atingida pelos chutes e boladas que não sentiria nada. Pois não há vida dentro de um tijolo e o nada jamais sentiria dor.
O toque de recolher tocou e todos foram se diringdo às salas de aula. Menos Nora. Um pensamento havia lhe tomado a mente.
Pior do que ser odiada, é sequer ser notada. E Nora sinceramente desejou ser odiada, como judas, por todos, para sentir-se segura.
Mas ninguém poderia odiá-la. Pensou. Por que?
E muito rapidamente tudo estava vazio. E então, sentiu que daquela maneira sentia-se melhor. Perto de ninguém, não tem como ser pior. E entendeu que a solidão lhe fazia bem. Pois lhe tirava de uma posição de defesa ou um julgamento constante, onde o que valia era o que consideravam normal.
Todos os recreios de Nora, em todos seus anos na escola, foram iguais. Presa por aqueles portões enormes, aprisionando seu corpo. Contudo, seus pensamentos voavam como pássaros livres no ar. Num amadurecimento solitário às duras manhãs intermináveis e frias dos invernos e infernalmente quentes e insuportáveis dos verões ainda mais alegres para quem se encaixava nos contextos das cenas de sua vida. Porém, menos doloridos de sentir. Como quando acostumamos com a dor.
A prolixidade de sua diferença ou, indiferença, a tudo, já fazia parte do que continha em si. Como um sinal gravado no corpo. De nascença.
Consigo, carrega ainda toda a bagagem entranhada das horas em que sua exclusão lhe levava à reflexão doída do preço a ser pago por se distinguir do que é a maioria.

Sinara Dutra