quarta-feira, 20 de maio de 2009

Recordo-me
Não lembro sua voz.
Lembro-me de sua barba por fazer e da estranha sensação que sentia quando tocava meu rosto no seu.
Do bigode que por vezes tapava seus lábios superiores.
Do cabelo encaracolado, penteado de hora em hora para trás, por seu pente portátil e particular. Uma leve lembrança de um queixo, nariz e boca de homem.
Das brincadeiras debaixo da d’água fria do mar. Quando boiava de costas por minutos, mostrando um bom fôlego; De quando submergia na água e emergia-se mostrando primeiramente os cabelos dançando ao som das marolas; Lembro-me de rir muito daquilo e ter medo quando ele, ainda submerso, em apnéia, sob o raso das ondas, tocava minhas pernas ou pés, fazendo-me saltar gritando, assustada, numa felicidade infantil e sincera.
De acordar mais cedo aos sábados ensolarados e lhe pedir a chave do Fusca amarelo estacionado defronte ao apartamento e ficar lá dentro, brincando de dirigir, com a testa sobre a buzina e um sorriso bobo nos lábios, enquanto ele me cuidava da janela fumando seu Marlboro, filtro vermelho.
Dos sábados e domingos frios em que ficava na cama, e do seu vai e vem da cozinha, trazendo iguarias em bandejas, enquanto assistia desenhos na televisão sobre sua cama – um colchão no chão em função de seus problemas na coluna.
Das mariolas, dos picolés e das gemadas.
Do cigarro e o isqueiro no bolsinho da camisa, junto com os trocados que me dava quando pedia para as balas e bolachas.
E de quando, às vezes, com a mão esquerda, tapeava o mesmo bolso várias vezes, para dar veracidade à sua afirmativa de que não tinha nenhum trocado lá.
De me exibir aos amigos vários e conhecidos ao andarmos pelas ruas e dizer-lhes que eu era sua “relíquia”.
Das suas mãos na parte de trás do banco de minha bicicleta rosa nova. De vê-lo caminhar curvado a meu lado a passos apressados, enquanto eu pedalava sorridente e temerosa naquela nova experiência; Da segurança que me passava ao saber que sua mão equilibrava-me, até largar-me e dizer para que eu continuasse sozinha, que estaria por me seguir, e assim vê-lo ficando para atrás de mim, satisfeito e orgulhoso de me ver livre, avançando o fim da viela em ziguezague.
Da última vez que lhe vi, nas areias de Tramandaí, com suas roupas inapropriadas para um dia de sol de verão em beira-mar; Da sua distância, à espera de meu abraço.
E da despedida fria e rápida; e dum aceno distante e melancólico, que vem, muito de vez em quando me visitar à memória como um trailer de um drama numa cena em preto e branco.
Hoje, quando se chega repentino à mim, vem em tons de samba, com "Deixa isso pra lá" - e uma dança estranha com a mão - sua música predileta de cantarolar.
E assim como as marolas que lhe escondiam para me divertir, ora as nuvens o escondem mesmo quando o céu está limpo e celeste, e é nele que o encontro, na imensidão deste azul vivo do céu.
Pra ti, pai.
"Deixa isso pra lá" e "Vem chegando a madrugada"
Sinara Dutra

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